Já fazia uma semana que eu estava na cidade. Havia arrumado
um lugar para ficar numa pequena hospedaria na saída da cidade, também havia
arrumado um emprego de meio expediente na venda do Seu João para bancar minhas
despesas, afinal eu precisava juntar um pouco mais de grana para poder seguir
em frente.
O Seu João era uma ótima pessoa, me contou muita coisa sobre
a vida dele. Muitas pessoas achavam que o Seu João era português, mas não era,
era brasileiro mesmo. Mas ter que explicar que viveu em Portugal durante alguns
anos e que acabou pegando um pouco do sotaque era difícil, ainda mais que tinha
que explicar toda vez e muitas pessoas não acreditavam.
Em um dos dias depois do trabalho eu resolvi dar uma volta
pela cidade e acabei me perdendo no tempo. A cidade era pequena e não tinha
como se perder realmente, mas a paisagem era bonita e me perdi em meus
pensamentos.
- Será que você é um anjo que só aparece aqui nessa fonte? –
eu perguntei me aproximando da menina de cabelos negros e pele clara.
Ela não me respondeu de primeira e continuava sentada com os
pés dentro da fonte.
- Me falaram que não se pode sentar na fonte com os pés
virados para dentro da fonte – falei sentando ao lado dela. Ela olhou bem nos
meus olhos e depois virou o rosto.
Ficamos em silencio por alguns segundos.
- Eles acham que podem e que sabem tudo nessa cidade, mas
não sabem de muita coisa. Eles se fecham para o que é real, e não entendem nada
– fiquei surpreso ao ouvir aquelas palavras, mas ficaria mais surpreso com o
que ela falaria em seguida – e a proposito, eu sou um anjo sim, só não sei bem
o que estou fazendo aqui nesse lugar, eu acho que cai.
Fiquei meio sem reação ao ouvir a resposta dela, pelo tom de
voz não dava para distinguir se ela estava falando a verdade ou se era apenas
uma brincadeira. Me perguntei se ela realmente acreditava que era um anjo, mas
mesmo assim resolvi entrar no jogo.
- Provavelmente você tem alguma missão aqui na Terra – eu
afirmei e logo em seguida ficando surpreso novamente.
A menina me olhava tão fundo nos olhos e eu não havia
percebido antes, mas os olhos dela eram castanhos. O olhar era de tamanha
intensidade que eu ouvi um grito desesperado de alguém que precisa de ajuda.
- Você ta falando serio? – a pergunta dela me fez questionar
o que seria “serio”.
- Eu acho que estou sim – minha resposta foi meio automática
para ainda continuar no jogo.
- Que bom que acredita em mim – ela riu e agora me olhava.
Da primeira vez que a encontrei ela não me olhava dessa
maneira, é como se eu fosse algo passageiro e sem importância. Como se eu
fizesse parte da paisagem e que não fosse mudar nada na vida dela. Mas após
dizer que acreditava nela, ela passou a me “enxergar”.
- Mas agora fica uma pergunta no ar, se você acha que eu
tenho uma missão aqui como anjo, qual seria essa missão? – ela perguntava
esperançosa que eu tivesse uma resposta pronta para ela.
- Eu não sei, o que os anjos fazem? Acho que eles ajudam as
pessoas, acho que você tem que ajudar alguém – eu não acreditava realmente que
ela fosse um anjo, mas via nos olhos dela que ela acreditava nisso com todas as
forças que ela possuía.
- Acho que você está certo, eu preciso achar uma forma de
ajudar alguém – ela parecia pensativa e ficava olhando a lua as vezes, eu me
sentia bem vendo a pele dela ser banhada pela luz do luar, aquela cena
combinava perfeitamente.
- Tem tantas pessoas precisando de ajuda.
- Mas anjos não ajudam qualquer um, precisa ser uma ajuda
especial. Talvez como salvar a vida de alguém. Uma vez eu salvei a vida de um
passarinho, ele caiu do ninho e eu cuidei dele até que ele pudesse voar
novamente – ela parou pra pensar um pouco – será que isso conta?
- Conta pra que? – eu perguntei me interessando na
imaginação da menina, eu estava começando a lembrar do que eu tinha ouvido
quando cheguei na cidade, que ela era louca, e começava a me pergunta se era
mesmo e que se fosse eu provavelmente estava ficando também.
- Pra eu voltar para casa.
- De que casa você está falando?
- Do céu, qual é a outra casa dos anjos?
- Você não tem uma casa aqui na Terra?
- Tenho.
- Então essa é uma outra casa de anjo.
- Talvez você esteja certo – ela me olhava fixamente como se
quisesse saber de algo – você também é um anjo? – eu não aguentei e ri um
pouco.
- Eu acho que não sou – respondi sem fazer muita questão.
- Mas é que você é diferente das outras pessoas, eu sinto
isso.
- Diferente como?
- Você não me julgou louca quando eu falei que era um anjo –
aquela resposta fez meu coração murchar, pois segundos atrás eu me questionava
sobre a sanidade dela – e você me escuta.
- E como um anjo chegou a Terra, e como veio parar aqui? –
eu perguntei tentando esquecer o fato do meu julgamento passado.
- Eu não sei como vim parar na Terra, só sei que fui achada
perto de um rio e fui entregue a adoção. Me contaram depois que meus pais não
me queriam, mas anjos não tem pais não é mesmo? – ela perguntou esperando uma
resposta positiva.
- Acho que Deus é o pai dos anjos.
- Exatamente – ela sorria como se a minha resposta
explicasse tudo – eu tentei explicar isso para as pessoas conforme eu crescia,
e era difícil alguma família me adotar, acho que ninguém gosta de adotar um
anjo, eles preferem crianças normais.
Eu começava a perceber o trauma para ela achar que era um
anjo. Foi abandonada pelos pais quando bebe, e precisava achar algum refugio
para não se sentir abandonada.
- Eu gostaria de adotar um anjo – eu falei e mais uma vez
fiquei surpreso com a reação dela.
Após falar que eu gostaria de adotar um anjo a menina me
abraçou de uma forma tão forte que achei por um momento que meus ossos estavam
fora do lugar. Nunca fui muito forte, mas tinha certeza que aquela menina era
mais forte do que eu, em muitos aspectos diferentes. Mas naquele momento a
fraqueza veio e ela começou a chorar.
- Eu tenho que ir – disse ela enxugando as lagrimas, e
levantou-se e partiu. Eu fiquei olhando para ela ir embora e de longe ela
gritou para mim – Meu nome é Mayara.
- Mayara, a menina que
pensa que é um anjo – eu sussurrei para mim.
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